David Copperfield (Charles Dickens)
“Não, não é sobre o mágico.” Ao longo das 1.312 páginas, se bobear até meu cachorro me perguntou se David Copperfield, de Charles Dickens, tem como personagem principal o ilusionista. A obra, publicada como livro em 1850, é sobre um outro David. Um David fictício, que nasceu órfão de pai, passou por poucas e boas na Inglaterra vitoriana, conheceu os mais inusitados sujeitos e, no auge de sua vida, decidiu fazer uma retrospectiva e descrever os caminhos que o levaram até onde estava.
— Quase nunca tomo café da manhã — replicou ele com a cabeça inclinada na poltrona.
— Acho aborrecido, alguma novidade hoje? — perguntou o doutor.
—Absolutamente nada — replicou o sr. Maldon, — Diz um relatório que as pessoas estão passando fome e descontentes no Norte, mas sempre existe alguém com fome e descontente em algum lugar.
O doutor pareceu sério e disse, como quem quer mudar de assunto:
— Então, nenhuma notícia. E pelo que dizem, nenhuma notícia é boa notícia. — Os jornais trazem uma longa reportagem sobre um assassinato — observou o sr. Maldon. — Mas alguém sempre é assassinado e eu nunca leio.
Uma demonstração de indiferença por todas as ações e paixões da humanidade não era considerada uma qualidade distinta naquele momento, acho eu, como observei ter passado a ser depois disso. Sei que está muito na moda mesmo. Já vi essa atitude exibida com tamanho sucesso que encontrei muitas ótimas damas e cavalheiros que podiam ter nascido lagartas que não faria diferença. Talvez tenha me impressionado mais naquela época porque era novidade para mim, mas com toda a certeza não exaltou minha opinião nem fortaleceu minha confiança no sr. Jack Maldon.
— Vim perguntar se Annie gostaria de ir à ópera esta noite — disse o sr. Maldon olhando para ela. — É a última noite boa desta temporada, e uma das cantoras merece mesmo ser ouvida. É absolutamente perfeita. Além disso, é adoravelmente feia. — E retomou a languidez.
Romance de formação
Trata-se de um Bildungsroman (romance de formação), um daqueles romances que, assim como Demian, do Hesse, e O Retrato do Artista quando Jovem, de Joyce, descrevem a jornada de um personagem, do nascimento até a maturidade, mostrando a formação de seu caráter e história de vida.
David Copperfield, personagem principal da obra de Dickens, acaba se tornando escritor. O livro pode ser considerado quase biográfico, já que muitos dos fatos narrados aconteceram, de forma semelhante, com o próprio Dickens — este, tinha a obra como o “filho favorito”. A ficção faz um retrospecto sobre as vicissitudes da jornada de David, focando na infância e juventude — tretas na escola, amores, perdas, grandes aprendizados e tudo aquilo que só os primeiros anos da vida podem forjar no ser humano.
Conectando os pontos
Nem me lembro qual foi a última vez que um livro havia me feito chorar. Mas Dickens conseguiu o feito, ao alternar estilos em um medley literário que leva do riso ao choro em poucos capítulos.
Sutil, bem humorado e excepcionalmente bem escrito, David Copperfield tem trocentos (cerca de 50) personagens, acontecimentos totalmente inesperados, descrições minuciosas e observações sagazes sobre a vida. Fui totalmente envolvida pela leitura, sendo possível sentir a paz de Yarmouth, a angústia do pequeno David e se encantar com a simplicidade dos Peggotys.
Se tem uma coisa que lamento sobre este livro é eu não tê-lo lido antes. Porém, a leitura coincidiu com uma época de minha vida em que tenho pensado muito sobre uma frase famosinha do Jobs, parte de um discurso que ele deu em uma formatura de Stanford:
“You can’t connect the dots looking forward; you can only connect them looking backwards.”
E Copperfield provavelmente concordaria.
Ah, e a edição da Cosac (que Deus a tenha) é simplesmente belíssima.